Instrumento capaz de fazer a mente do ser humano transcender no tempo e no espaço, a literatura é, ainda, pouco acessada por considerável parte da população brasileira, seja por falta da “cultura do ler” ou devido a um deficitário ensino público. E para comunidades ribeirinhas localizadas nos mais longínquos territórios no interior do Amazonas a arte da leitura e da escrita é, por vezes, uma experiência mais distante.
Por este motivo, e com o objetivo de promover a leitura, o domínio da oratória e da escrita para crianças e adolescentes de escolas ribeirinhas de quatro Unidades de Conservação (UC) no Amazonas, o Projeto Incenturita, da Fundação Amazonas Sustentável (FAS), levou dois escritores amazonenses, Jan Santos e Beatriz Mascarenhas, para visitar jovens estudantes dessas comunidades. As ações foram realizadas em parceria com o Instituto Alair Martins, Samsung e Bradesco.
Nomes promissores na literatura amazônica e conhecidos por obras sobre o folclore amazônico e poesias em versos livres, Jan e Beatriz exercitaram a arte da leitura e da escrita com mais de 150 alunos dos núcleos Márcio Ayres, da comunidade Punã, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Mamirauá, no município de Uarini; Agnello Bittencourt, na comunidade Tumbira, na RDS Rio Negro, em Iranduba; e Assy Manana, na comunidade Três Unidos, dentro da Área de Proteção Ambiental Rio Negro, em Manaus.
Nos encontros, que contaram participação voluntária dos escritores, os jovens puderam compartilhar vivências e sentimentos em relação à escrita. “São jovens que contam histórias o tempo todo. Histórias orais de assombração ou ‘visagens’, histórias de animais, de temporais, de caminhadas na floresta, etc. Nosso objetivo era estimulá-los para que pudessem enxergar como possível a imortalização de suas histórias através da escrita. Nada melhor que pudessem interagir diretamente com alguém que dedica sua vida à arte da escrita”, disse Emerson Pontes, coordenador do Projeto Incenturita.
De acordo com Pontes, durante as visitas foram desenvolvidas atividades como oficinas sobre subgêneros literários, desde o conto, até a ficção e elementos tradicionais de narrativa; rodas de diálogo sobre as relações entre tradição oral e a literatura; oficinas de improviso e narração; oficinas de produção textual, além de leituras compartilhadas de textos de Jan Santos e de Beatriz Mascarenhas, e também de outros escritores amazonenses como Thiago de Melo e Vera do Val.
“Foi uma experiência muito bonita para mim. Estávamos ali trabalhando com a oralidade e a maioria das histórias que os garotos compartilharam foi a partir da tradição oral que eles cultivam na comunidade”, contou o escritor Jan Santos. “Foi muito bacana ver que o que a gente chama de oralidade é algo vivo e pulsante na vida deles, faz parte do cotidiano. Ver como eles sentiam deleite e se sentiam representados em poder contar as próprias histórias e poder dividi-las, e compreender que as histórias que eles escutam todos os dias podem ser convertidas em literatura por eles mesmos”.
Além de aprenderam sobre subgêneros literários e exercitarem a produção textual, os jovens também puderam desenvolver a linguagem teatral. Crianças e adolescentes da comunidade Tumbira, na RDS do Rio Negro, em Iranduba, criaram e encenaram uma peça teatral inspirada no livro “A Batalha da Cachoeira do Cipó”, de Vera do Val, utilizando exemplares doados pela própria autora. A escritora Beatriz Mascarenhas, que também é atriz e produtora de um coletivo teatral em Manaus, o Coletivo Mona, participou da ação.
“Eles mesmo foram criando cada cena da peça. Não tiveram falas decoradas, papéis ou textos prontos. Eles tiveram a liberdade total de criar em cima do texto da Vera do Val, falaram o que cada personagem deveria falar de acordo com cada cena”, explicou Beatriz. “Foram muito criativos e também produziram os figurinos, o cenário da peça, tudo tirado de dentro da mata, com folhas e flores para compor as indumentárias. Eles foram muito felizes”.
Para Beatriz, a experiência vivida com as crianças e adolescentes das comunidades ribeirinhas também foi bastante significativa. “Antes da peça, quando ensinamos sobre as características dos contos e eles precisaram criar, foi muito comum ver contos sobre a vida deles, a canoa, a cobra, o rio, bem diferente do meio urbano do qual estou acostumada. Então foi muito gratificante poder ouvir essas histórias, próximas da realidade dele”, ressaltou a escritora.
Os textos literários produzidos pelos jovens durante as visitas vão servir, no futuro, para criar um Banco de Histórias de Vida dos ribeirinhos, que é parte do Projeto Incenturita como produção artística e cultural. Segundo Emerson Pontes, coordenador do Incenturita, as crianças e adolescentes participantes do projeto ficaram satisfeitos com os resultados.
“Foi muito estimulante perceber a satisfação deles e dos escritores com esta vivência. Conexões deste tipo nos ensinam muito e também fortalecem a nossa estratégia de mobilização de juventude. Voltamos com versões aprimoradas de histórias escritas que estão compondo um Banco de Histórias de Vida de jovens ribeirinhos”, disse Pontes.
Jan Santos é mestrando em Letras e Estudos Literários pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam). O imaginário amazônico tem sido vital no projeto literário dele, aparecendo com destaque no segundo livro “A Rainha de Maio” (2016) e entre os contos de “Relatos de um Mundo sem Luz” (2013), “Quando a Selva Sussurra” (2015), “O Dia em que enterrei Miguel Arcanjo e outros contos de fadas” (2017) e “As Cores da Floresta” (2018).
Beatriz Mascarenhas é mestranda também em Letras e Estudos Literários pela Ufam. A poesia dela é em versos livres e crônicas sobre o cotidiano e compõem as principais obras dela, como “As Dez Poetisas – Antologia Formas em Poemas” (2012). Mascarenhas também é atriz e produtora de um coletivo teatral em Manaus, o Coletiva Mona.